Entre o texto jurídico e a realidade, as mulheres ainda enfrentam o peso da descrença, do julgamento e da ausência de acolhimento institucional
A criação de leis voltadas à proteção das mulheres é, sem dúvida, um dos maiores avanços jurídicos e civilizatórios do Brasil. A Lei Maria da Penha, o feminicídio como crime hediondo e as políticas de enfrentamento à violência doméstica são conquistas que nasceram de lutas longas e dolorosas. No papel, o país parece ter entendido que proteger a mulher é um dever do Estado. Mas, na prática, a distância entre o direito garantido e o direito vivido ainda é abissal.
Em muitas cidades, sobretudo no interior, a denúncia ainda é vista como um gesto de “exagero” ou “destruição da família”. A palavra da mulher continua sendo colocada sob suspeita — um eco da cultura que insiste em desacreditar a vítima e humanizar o agressor. Quando uma mulher procura ajuda, muitas vezes enfrenta uma segunda violência: o descaso institucional, o preconceito e o julgamento moral.
Nesse contexto, o papel dos órgãos de proteção — delegacias especializadas, defensorias públicas, centros de referência — torna-se fundamental. É preciso que essas instituições compreendam que acolher é parte essencial da justiça. O atendimento humanizado, a escuta empática e o amparo psicológico não são gestos de caridade, mas deveres do Estado. Julgar, duvidar ou minimizar a dor da mulher é repetir a violência sob o disfarce da burocracia.
Entretanto, o desafio se agrava em cidades que sequer contam com esses espaços. Há municípios inteiros sem delegacias da mulher, sem equipes capacitadas e sem estrutura mínima para garantir o amparo previsto em lei. Nessas localidades, a violência se mistura ao silêncio, e a vítima se vê obrigada a enfrentar o agressor em instituições que não foram preparadas para entender sua dor. A ausência do Estado é, nesse caso, mais uma forma de violência.
A sociedade brasileira, embora cercada por leis protetivas, ainda mantém uma cultura que romantiza o controle, o ciúme e a submissão. O silêncio, imposto historicamente às mulheres, se perpetua agora sob formas mais sutis — o medo do que vão dizer, a vergonha de expor o agressor, o descrédito nas instituições.
É preciso compreender que nenhuma legislação, por mais avançada que seja, se sustenta sem transformação cultural. A lei protege, mas a sociedade precisa acolher — e o Estado, por meio de seus órgãos, deve ser o primeiro a dar o exemplo. Enquanto a mulher agredida continuar sendo questionada, e não ouvida, a justiça permanecerá incompleta.
Dra. Débora Garcia Duarte
Advogada. Mestre em Direito (UENP - Jacarezinho). Professora universitária e coordenadora da FIT. Autora da obra Reveng Porn: a perpetuação da violência contra a mulher na internet e o poder punitivo. Pesquisadora na área de direitos das mulheres e doutoranda pela FCA - UNESP Botucatu.