Quando não há mulheres na política, o debate sobre nossos corpos vira um espetáculo de absurdos
Nos últimos dias, o país assistiu perplexo à repercussão da PEC que buscava alterar a legislação referente ao aborto em casos de estupro — uma proposta que, além de juridicamente distorcida, reacendeu um debate que deveria, no mínimo, ser tratado com responsabilidade, seriedade e sensibilidade. Mas o que vimos foi exatamente o contrário: vozes masculinas, majoritariamente conservadoras, discutindo — e votando — sobre o corpo da mulher, sobre violência sexual e sobre garantias mínimas de dignidade que, ironicamente, não dizem respeito à experiência deles.
A discussão ganhou força, foi parar nas ruas, dominou as redes e provocou reações indignadas de organizações de direitos humanos, especialistas e, claro, de milhares de mulheres que se viram mais uma vez objetificadas no debate público. O absurdo da proposta chama atenção por si só. Mas há algo ainda mais grave em toda essa história: quem eram os parlamentares por trás dessa movimentação? Quem são os perfis que se autorizam a legislar sobre uma experiência traumática que nunca viverão?
Quando olhamos para o Congresso, a resposta escancara um problema estrutural: não há mulheres suficientes para defender pautas que dizem respeito às próprias mulheres. E quando não estamos nos espaços de decisão, esses espaços são preenchidos por quem nunca carregou o peso das violências que tentam regulamentar.
É sintomático — e revelador — que em pleno 2025 discussões tão sensíveis continuem sendo pautadas por homens que, muitas vezes, sequer reconhecem a gravidade da violência de gênero no Brasil. Em um país onde o estupro é subnotificado, onde meninas são obrigadas a levar gestações adiante por desconhecimento ou pressão institucional, e onde mulheres convivem diariamente com ameaças, silenciamentos e julgamentos, ver uma PEC como essa avançar mesmo que simbolicamente é testemunhar o apagamento institucionalizado.
E aqui retomamos uma pergunta que já fizemos em outra coluna: onde estão as mulheres na política? Onde estão as vozes femininas que deveriam estar ocupando cadeiras, comissões, gabinetes, microfones? Em cidades pequenas, como Fartura, que mencionamos recentemente, a ausência feminina na política local se reflete nacionalmente. Não é coincidência: é um ciclo.
Quando mulheres não chegam ao poder, o poder continua decidindo contra elas.
Trazer temas relacionados ao gênero para mesas compostas majoritariamente por homens é pedir que quem não vive a realidade defina a realidade de quem vive. E é essa lógica excludente que permite que propostas absurdas ganhem espaço. Não porque têm mérito, mas porque não há mulheres suficientes para barrá-las antes de se tornarem manchete.
A reação pública negativa — justa, necessária e ruidosa — mostra que há algo mudando na sociedade. Mas ainda não mudou onde realmente importa: no número de mulheres com voto, voz e poder dentro das instituições.
Até que tenhamos representatividade verdadeira, continuaremos assistindo a esse teatro da incoerência: homens debatendo o corpo da mulher, homens opinando sobre violência que não sofrem, homens definindo direitos que não se aplicam a eles.
E nós? Continuamos resistindo. Continuamos escrevendo. Continuamos denunciando. Mas, acima de tudo, continuamos exigindo aquilo que deveria ser básico em qualquer democracia: que mulheres tenham o direito de decidir sobre aquilo que diz respeito às próprias mulheres.
Dra. Débora Garcia Duarte
Advogada. Mestre em Direito (UENP - Jacarezinho). Professora universitária e coordenadora da FIT. Autora da obra Reveng Porn: a perpetuação da violência contra a mulher na internet e o poder punitivo. Pesquisadora na área de direitos das mulheres e doutoranda pela FCA - UNESP Botucatu.
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